16 de abril de 2013

O Circo Teológico Brasileiro

Ok, preciso admitir. Este é um assunto que jamais imaginei que me veria tão compelido assim a escrever aqui no blog. Mas, diante de tamanho bafafá social na Internet e fora dela, resolvi abrir um espaço aqui para dar talvez meus dois pitacos a respeito. Faz tempo que ando temperando essa ideia, para saber se realmente vale a pena ou não discorrer a respeito. Se seria atiçar a fogueira ou simples perda de tempo. Mas, cá estou eu, vendo no que vai dar...


Em primeiro lugar, creio que eu deva dizer quem e o que raios eu sou para pelo menos dar alguma moral para o resto do post. Bom, vamos lá. Sou formado em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (um título quase irrelevante para o assunto em si), atualmente curso Sistemas de Informação pela Faculdade Metodista Granbery (que aliás, tem um ensino de Teologia e Filosofia paupérrimos), mas cheguei a cursar um pouco de Teologia entre essas duas faculdades. Fato, não possuo nenhum título acadêmico, mas por mais que eu tenha entrado na Teologia quase que por acidente, na falta de coisa melhor para fazer no momento (tendo a abandonado justamente em virtude da minha faculdade atual), devo confessar, o estudo teológico sério é muito legal. É uma área fantástica da Filosofia e que de fato, imagino que as pessoas que gostem de Sociologia ou Filosofia devem gostar pra caramba assim que tiverem um contato mais profundo a respeito. Dito isso, quero a seguir delimitar o que raios a Teologia é. Coisa que vejo com noção errônea tanto por parte dos religiosos quanto por parte dos pretensos ateus e intelectuais-de-fim-de-semana.

O termo "sério" grifado acima está assim porque é muito fácil (surpreendentemente fácil, na verdade) bolar qualquer coisa tirada de trás da orelha do cachorro do primo do vizinho e chamar isso de "revolucionária doutrina teológica". Sério, a maioria dos ditos teólogos que já conheci não faz a menor ideia de como diferenciar Platão, Aristóteles de Sócrates. Mas eles dizem que o importante é saber da Bíblia. Vou discutir isso mais à frente.

Se você quiser testar um teólogo, pergunte a ele quem é esse cara.
Se não souber, nem ouça o que ele tem a dizer...
Ao contrário do que a origem semântica parece indicar, a Teologia não é o estudo de Deus. Dizer isso seria negar a possibilidade de haver, por exemplo, uma Teologia que não seja judaico-cristã/monoteísta. Sim, a própria religião dodekatheana possui um discurso teológico e apologético muito bem feito. O objeto de estudo da Teologia não é nada senão o fenômeno do "sagrado". Por sagrado devo dizer que algo que vai além da religião em si. A religião é o método mais comum pelo qual os seres humanos sociais lida com o sagrado. Mas o sagrado por si só também transcende o conceito de religião. Claro. Pelo menos na linha tillichiana (do teólogo Paul Tillich. Um dos, se não o bam-bam-bam do século XX no assunto), o sagrado é ininteligível em sua totalidade pelo ser humano. Pelo menos em sua totalidade. Por outro lado, ele se dá a parecer, mas o que vemos são indícios, não a coisa em si. Um processo muito semelhante ao mito e a platônico das sombras nas cavernas e o conceito da causa em si de Immanuel Kant.

Immanuel Kant. Reinventor do moderno do:
"Só sei que nada sei. Em si".
Em segundo lugar, a Teologia cristã contemporânea abomina totalmente a ideia (inicialmente francesa, depois levada para os EUA, e de lá pra quase toda a América) de positivismo. O próprio Kant já criticara bastante esse conceito (de que o ser humano seria capaz de experimentar a coisa em si, impassível de impressões pessoais subjetivas, de modo totalmente neutro, impessoal e científico). Dizer ou pensar isso não significa ser contra o desenvolvimento científico. Não saber explicar em toda minúcia de fluxos binários e e impulsos elétricos o funcionamento do seu celular jamais o impediu de usá-lo plenamente. O que o "anti-positivismo" diz é que a verdade em si de todas as coisas é inefável ao ser humano. A maior parte das linhas alemãs de Teologia protestante (séria, óbvio) se orienta mais pelos nortes (ou falta deles) oferecidos por Kant. Assim, o objeto sagrado principal, a causa última da realidade, como diria Tillich, jamais seria totalmente compreendida ou explicada pelo ser humano. Ainda que fosse, isso seria totalmente contraproducente para a Teologia. Simplesmente tal objeto deixaria de ser o sagrado em si, e este passaria a ser algo novamente inefável. Assim, a Teologia também não busca "explicar Deus". A própria natureza, tanto do objeto quanto dos métodos de estudo, impedem e tornam a pergunta em si bastante ilógica.

Ora, assim sendo, é natural que o sagrado em si não possa ser contido, explicado, nem sequer mensurado em sua totalidade em receptáculo nenhum concebível em nossa realidade limitada. Ou seja, a Bíblia não É a "Palavra de Deus". Ela pode sim, conter indícios que apontam para o sagrado, mas, novamente, o sagrado é inefável. Não se sequer conceber a sua grandeza.

Este é o ponto que vejo como central em muitos conflitos religiosos. Todos parecem se preocupar no que a Bíblia disse ou deixa de dizer. Levando em consideração que ela passou por alterações graves desde suas concepções originais, que há sérias contradições textuais apontadas em vários estudos literários a respeito, o que se pode concluir é que a Bíblia de maneira alguma deve ser argumento cabal para coisa alguma. Ora, se Deus (ou a causa primeira, razão última da realidade, se você for um tillichiano roxo) nos deu razão individual e autônoma, deve ser para a usarmos, afinal. Só para dar ideia, estudos literários nem tão recentes assim já indicaram que ao que tudo aponta, o texto bíblico que nós temos hoje é um apanhado de diversas outras fontes literárias durante a formação do povo de Israel (notem que, por exemplo, há DUAS versões para a criação do mundo no livro de Gênesis. Se atentarem bem, Gn 1.3-31 segue uma métrica quase poética, repetitiva, provavelmente um canto, que é a que todos nós conhecemos. Muito comum para um povo que valoriza a tradição oral por uma fase de nomadismo. O início do capítulo 2 parece encerrar a história, mas no v. 4 ela é retomada. O v. 8 parece ferrar legal com a história anterior. Nele, temos a ideia de que o Jardim do Éden é construído em função do Homem. Não o contrário. Pois é. Um pensamento humanista milênios antes da Europa criar o termo). O resultado é uma epopeia MUITO superior a qualquer coisa que a Europa teria conseguido criar mesmo nos auges do século XV. Contradições que podem até passar despercebidas como esta que eu citei existem ao longo do Antigo Testamento aos montes. Mas isso invalida a Bíblia e a torna um objeto de estudo medíocre? Longe disso. Estudos têm apontado para que esses "deslizes" ocorrem porque na verdade temos vários apanhados literários diferentes, de tradições diferentes sendo construídos para então criar essa ideia epopeica.

O grande diferencial literário do conteúdo bíblico em relação a outros conteúdos míticos está no modo em como Deus vê os seres humanos em relação aos outros deuses. Em quase toda cosmogonia, o ser humano é criado quase que por acidente. Uma coisa ingrata, um grão de areia no deserto. Nesse prisma judaico primitivo o que temos é um Deus que cria um mundo quase que para servir ao homem, para ele dominar e administrar com sabedoria. Normalmente vemos o Deus do AT como um ser irascível por pouca coisa, mas nos esquecemos que ele também é justo aos castigados. Ele oferece chance aos conterrâneos de Noé para entrarem na arca. Ele dá roupas e instrumentos para Adão e Eva (que nota, ainda não se chamava Eva) ao serem expulsos do Paraíso. Enfim, a questão é que isso tudo é sim um apanhado mítico. Assim como em qualquer cosmogonia mítica, temos um homem cuja ciência ainda não têm condições de explicar o mundo à sua volta tentando entendê-lo. O livro de Gênesis posterior é quase todo para tentar explicar as coisas. Por que as mulheres têm dor no parto? Por que o trabalho cansa? Por que há tantas línguas no mundo?

Não, não se tem até hoje notícias de textos bíblicos "originais", por mais que a Veja e o G1 digam o contrário. O que temos são textos antigos pacas, mas mesmo os Evangelhos mais antigos que temos são do séc. II. Não consigo imaginar qual dos apóstolos de Jesus teria vivido pelo menos 200 anos para escrever esses textos. Mas o que se passa aqui é bem mais complexo do que isso. Ao que tudo aponta, os apóstolos iniciais não viram necessidade imediata de deixar algo para a posteridade. A culpa teria sido do próprio Jesus, ao dizer "Não passará esta geração sem que essas coisas ocorram". Os discípulos então teriam entendido o negócio errado, e achado que realmente eles é que consumariam o Apocalipse. A necessidade de ter textos escritos só surgiu quando de fato as primeiras comunidades cristãs se estabeleceram (mais ou menos nessa época mesmo, séc. I-II). E aí o que temos é gente escrevendo o que ouviram de gente que conheceu algum dos discípulos. Isso obviamente geraria alguma discordância entre os Evangelhos, mas nem todos foram tirados do códice por conterem heresias cabeludas que abalariam o domínio (???) da Igreja sobre a sociedade, como mais comumente se acha. O Evangelho de Felipe, por exemplo, descreve algumas coisas "nada a ver", como Jesus soprando vida num passarinho de barro que ele fez quando criança... Coisa muito legal, mas que pouco ajuda no que um Evangelho deveria de fato contar. O de Tiago (meu xará), vai ainda mais longe, colocando altas viagens gnósticas se dizendo o único dos 12 que de fato entendeu o que Jesus queria. Novamente, nem foi o próprio Tiago (nem o próprio Judas, antes que  comecem a falar disso) quem escrevem seu próprio Evangelho. E sim alguém, muito tempo depois, escrevendo como um dos discípulos.

Em suma, o que quero dizer com isso tudo é que a Bíblia de maneira alguma deve ser vista como um documento histórico preciso, unívoco e inerrante escrito diretamente por Deus e entregue aos homens. Ela é uma obra humana, mas que por apontar para as preocupações do Homem, acaba atingindo o que é divino. Como também dizia Tillich, "o importante não é o mito em si. Mas para o que o mito aponta". O ser humano aprende por histórias, e segundo o mestre de Sherazade, "Histórias são ainda mais importantes do que pão. Um povo pode até viver sem pão, mas não consegue viver sem criar histórias. Histórias ensinas as pessoas a viver. Como viver. E pelo que viver".

Quase que por fim, vale a pena ressaltar que o discurso religioso, mesmo que "desembasado" do fundamento científico tão valorizado pelos positivistas, ainda conseguiu êxitos desenvolvendo a sociedade indiana e chinesa a níveis muito elevados aos da Europa em seus respectivos auges. Normalmente vemos a religião como algo de gente inculta, ou que não tem capacidade para dominar a bendita ciência em sua plenitude. Mas creio ainda que a visão religiosa apenas permite que você coordene as pessoas na direção certa, de modo mais rápido do que seria explicar para elas os porquês disso. Sei que soa meio errado, mas ninguém pode negar que de fato funciona... Para o bem, ou para o mal.

O texto em si é longo, mas a moral sobre todo esse quiprocó religioso está escalando a níveis tão insanos, e a Teologia de fato está tão acima de tudo isso que é quase ridículo tentar conversar com qualquer um dos lados envolvidos. Processo semelhante ocorre também na Arte, em que o público sempre parece estar pelo menos uns trinta anos atrasado em relação àquilo que crítica e artistas têm produzido.

Enfim, espero ter ajudado a espalhar boas ideias por aí, gerar certa curiosidade a respeito e que nenhuma discussão inflameada surja por aqui. No mais, bons dias a todos nós!

Um comentário :

  1. O vinculo entre nossas crenças e necessidades é mais profundo do que aparenta.

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