31 de outubro de 2010

Novo RPG Antigo, Palavras Chinesas e Poesia Visual


Assim tem sido meus últimos dias. Desde ontem, na verdade. Acompanhando uma discussão no orkut sobre RPG + Artes marciais, me interessei por um fio argumentativo que falava sobre um RPG ambientado numa China "medieval" fantástica, muito ao estilo dos filmes "wuxia" (sintam-se à vontade para quebrar a cabeça traduzindo isso). Como fã de longa data de clássicos como "Era Uma Vez na China" (nem faço idéia de quantos filmes a série toda teve), "Tai Chi" e vários outros filmes chineses de décadas saudosas, fui correndo o máximo que pude para colher informações sobre como seria esse tal RPG de nome curto, chamado Qin - The Warring States.



Sim, o subtítulo traduzido quer dizer que
tenho trabalho na tradução do livro
Qin (dizem as más línguas, pronuncia-se "Chin", embora já tenha ouvido como "Kin") é ambientado numa China fictícia, na tão famosa Era dos Três Reinos (em que o que seria a "China" de hoje, ou Zhongguo, como era chamada na época, era dividida, na verdade em sete "states" menores que lutavam pelo domínio. Não sou nenhum especialista em história chinesa, mas creio que os "Três Reinos" se devam ao fato de que dos sete, apenas três tinham chance de reconquistarem o Império) em que os típicos heróis são artistas marciais e sábios místicos de habilidades fantásticas. Acessando os poderes do Chi (ou Qi, dependendo de qual dialeto chinês você prefere), armas místicas, forças naturais incríveis ou espíritos transcedentais, esses homens e mulheres combatem o mal esteja na forma de bandidos inescrupulosos, soldados inimigos ou monstros diabólicos.

Fato, ainda não digeri o suficiente do livro básico para poder dizer com certeza o quanto isso é diferente de D&D. Até agora, me parece uma fórmula bem similar, mas com o ar bucólico que sempre vemos nos filmes de kung-fu baseados na China antiga. Aventureiros são substituídos por mestres marciais, e os monstros típicos ganham novas vertentes, baseado na incomensuravelmente rica mitologia chinesa, repleta de monstros horrendos, assustadores e fantásticos. Não estranhamente, grande maioria deles, em outro RPG mitológico, Scion, são oriundos do poder de Hundun, o Titã do Caos. Daí tanta loucura e irracionalidade em suas formas e comportamentos.

Algo muito característico de qualquer obra que relate esta lendária era, é o uso de heterônimos bastante poéticos aos personagens, como Águia de Ferro, Punho de Bronze, Coração de Jade, Nuvem Cinzenta, etc. Não que nomes como os típicos dos heróis da China como Li Mu Bai, Wong Fei Hong e Huo Yuwanja (novamente, devo ter errado o nome de alguém) tenham saído de moda, mas não considero essas duas vertentes mutuamente excludentes.

Outro lance legal que espero ainda ver em Qin é um sistema que permita de maneira simples todos os rápidos revides e contra-golpes que vemos nos filmes de kung-fu. Seqüências de ação que sejam belas e criativas, arstíticas e plásticas (óbvio, por se tratar de um RPG, isso depende mais dos jogadores do que do sistema, de fato). Olhando por alto, a ficha do RPG pelo menos me pareceu muito bonita. Acompanhando o interior em preto e branco, o que acho muito mais prático, ao invés da bela porém raramente imprimível colorida ficha de L5R 4ª edição. Antecipo, porém, que talvez ele tenha se preocupado demais com precisão histórica e focado menos no "fun factor" do ambiente e do RPG em si. Não gosto de Sengoku exatamente por ele ser um livro de História travestido de RPG. 7th Sea, por outro lado, usa descaradamente a história da Europa como fonte para a do cenário. No entanto, as licenças poéticas em tal processo são tão evidentes quanto suas semelhanças factuais.

O livro trata os sete territórios principais de Zhongguo como "states". O primeiro impulso é traduzir isto como "estados", daí "Estados em Guerra", mas creio que o termo reino seja mais remissivo à idéia dos Três Reinos como um lugar específico no inconsciente coletivo mítico/histórico chinês.

Como disse anteriormente, não posso dizer ao certo do que Qin se trata totalmente. Espero um RPG de uma China heróica, com estilos marciais taoistamente buscando inspiração em fenômenos da natureza e animais ("Seu estilo garra de tigre não é páreo para meu trovão retumbante, Lao Tien!" "Agora trema diante da técnica punho dourado de Xieng Fu!"), com um misticismo e iconografias próprias e bem trabalhadas.

Por já estar trabalhando em cima de Qin, hoje tive saudades dos filmes wuxia e resolvi resgatar o DVD de Herói aqui de casa. Realmente a escola chinesa de cinema tem me impressionado bastante, mesmo que obras que deveriam ser grandemente divulgadas por aqui nem sequer tenham abandonado o anonimato, como Donnie Yen (que faz o Céu, em Herói) no papel de Yip Man, no filme originalmente do mesmo nome, um trabalho muito análogo ao Mestre das Armas, do muito mais celebrado Jet Lee.

Bom, voltando a Herói, considero o filme uma obra prima de "poesia visual". E Zhang Zimou realmente não deixa por menos. Ele já vinha de filmes muito bons, embora de orçamento bem pequeno, como O Trem de Zhou You (devo ter escrito o nome errado) e Lanternas Vermelhas (este, aliás, estrelando a incrível Gong Li, mais conhecida por aqui por sua atuação em Memórias de uma Geisha). Antes de falar sobre o filme propriamente dito, gostaria de citar Huizinga, que diz que a verdadeira função da poesia é retratar a guerra, onde ação, drama e sentimentos seriam expressos com tamanha celeridade e coesão, ampliadas pela hiper-significância que a poesia normalmente atinge. Se Huizinga estava certo, ele gostaria muito de ver este filme, creio eu.

Maggie Cheung e Zhang Ziyi se enfrentam numa das cenas mais
marcantes do filme.
Nas palavras do diretor e roteirista Zhang Zimou, mesmo que muito tempo depois ninguém se lembre de Herói, ou de sua história, certamente se lembrarão de cenas de duas mulheres bonitas lutando numa floresta de folhas douradas, ou de um casal em roupas de cores quentes defendendo uma escola de caligrafia de uma chuva de flechas praticamente sozinhos, ou de dois cavalheiros se enfrentando sobre um lago de águas plácidas. Muitos críticos lançam pedras sobre este trabalho exatamente por exageros como o segundo, que, não custa ressaltar, na trama é puramente uma ficção criada pelo protagonista. Ainda que não o fosse, o artista, em qualquer que seja o seu meio, tem plena liberdade para cometer a licença poética que quiser, contanto que ela contribua para obtenção de seu real objetivo. Se ninguém critica Picasso por ele desenhar pessoas "quadradas", que ninguém critique Zimou por cometer graves surrealismos, prévia e sacramente perdoados pela beleza das cenas em que ocorrem.

Como se não fossem suficientes o primor gráfico que são as locações e os cromatismos hiper-significantes usados nas cenas, o tema em cello super cativante, certas partes do texto realmente saltam aos corações (diria que aos ouvidos, mas, sinceramente, considero o idioma chinês algo muito estranho de ser falado para ser tido como "belo"). Entre uns e outros, gostaria de ressaltar aqui alguns diálogos/falas que considero primordiais no filme.

Após terem visto a perícia da esgrima de Sem Nome, o casal Espada Quebrada e Neve Voadora discutem se devem ou não se sujeitar a sofrerem um golpe dele para dar ao protagonista a chance de matar o rei de Qin.

Neve Voadora: "Temos de ir amanhã."
Espada Quebrada: "Ir significa morrer."
Neve Voadora: "Morreremos juntos, então."

Em outra versão, Neve responde: "Se morrermos, que seja juntos.", o que considero muito mais legal. É incrível o quanto Neve consegue expressar seu amor com tão poucas palavras, com uma eficácia fantástica. O que não passa sem retribuição por parte de seu amado, mais tarde, quando é ferido por ela, impedindo que ele vá até o sacrifício diante do exército de Qin.


Neve Voadora: "Eu quero que você viva."
Espada Quebrada: "Se você morrer, como poderei viver?"

Em outro momento, mais à frente do filme, o rei de Qin se oferece como sacrifício voluntário a seu assassino oculto. De costas para ele, e olhando para o pergaminho feito pela caligrafia de Espada Quebrada, o monarca discursa:

"Acabo de me dar conta, este pergaminho não contém o segredo do espadachim, mas o ideal supremo de Espada Quebrada. No primeiro estágio, homem e espada tornam-se a mesma coisa. Até uma lâmina/folha de grama pode ser uma arma letal. No estágio seguinte, porém, a espada reside não na mão, mas no coração. Mesmo sem uma arma, o guerreiro pode matar seu inimigo a cem passos. Mas o ideal máximo é quando a espada desaparece totalmente. O guerreiro envolve tudo ao seu redor. O desejo de matar não existe mais. Só resta a paz."

Com interpretações muito contidas, mas muito bem executadas de todo um elenco já consagrado, tendo como atriz menos experiente a então promissora Zhang Ziyi (O Tigre e o Dragão, O Clã das Adagas Voadoras), e na minha humilde opinião a incrível Maggie Cheung no papel de Neve, o filme é um primor. Sinceramente, não entendo porque O Clã das Adagas Voadoras (ou, nas palavras desastradas de uma amiga de um professor meu "O Clã das ARARAS Voadoras") é tão celebrado, e Herói tão criticado, não raramente, pelos mesmos motivos. Aliás, ainda hoje, a canção de O Clã ainda me soa incrivelmente bela, e de uma significância muito análoga à L5R também.

Em suma: os filmes chineses recentes de modo geral (não só wuxia) têm me impressionado bastante por sua plasticidade e trilhas sonoras cada vez mais convidativas. Lamento não conhecer tanto do assunto quanto gostaria, em grande parte porque muita coisa (como os trabalhos do Stephen Chow, que eu adoro) simplesmente não chega aqui, mas pelo menos me agradam bastante essas novas tendências. Tomara que Hollywood aprenda algo com eles, ao invés de ocupar milhões de dólares na initerrupta agressão à mitologia e literatura gregas (Tróia, Fúria de Titãs, Percy Jackson, etc.).

6 comentários :

  1. Bom Qin parece ser um cenário extremamente sedutor. Muito mesmo.

    Todas as possibilidades que encerra dentro de seu provável sistema.
    D&D é um clássico, mas por mais fantasioso que seja, sempre colocamos um pouco do que aprendemos nas nossas aulas de Historia sobre Europa Medieval. Vão dizer que não.

    É algo familiar para nós e confortável, Mas RPGs como Qin e Five Rings deixam essa zona de "conforto" e nos jogam no "maravilhoso".

    Quem é que não se maravilha com filmes como Heroi e o Clã das Adagas voadoras?
    Não tem como não é mesmo? Por isso parece sedutor um RPG que permita que façamos isso tambem. Mesmo que só interpretando...

    Que venha Qin, XD

    ResponderExcluir
  2. O cenário parece ser bem legal, e os filmes citados pela colega acima e o Hayashi realmente são fabulosos, mas gostaria de acrescentar a lista acima o filme “Os Senhores da Guerra” com Jet Lee.

    ResponderExcluir
  3. Realmente, o Senhores da Guerra me escapou. Pasmem, mas não sou tão fã assim do Jet Lee. Admiro bastante o trabalho dele, além de respeitá-lo bastante como teórico e artista marcial, mesmo fora dos sets. Vou ver se assisto ele por esses dias.

    Antes que me cobrem, peço desculpas por ter colocado a foto da floresta dourada de Herói com a CORDA da Maggie Cheun aparecendo (reparem, está presa às costas da mulher à esquerda).

    Outro filme, embora não muito wu xia, mas q é bem legal por tratar dessa época mítica da China é A Maldição da Flor Dourada ("Shame on Lady M" por não tê-lo citado no post acima. Ela é fã desse filme), também estrelado pela Gong Li e com armaduras muito bonitas, douradas e cheias de "rococós" (tá, eu gosto de Barroco. E a arte aristocrática chinesa qse sempre é cheia daqueles detalhes escultóricos "impossíveis"). Não gostei tanto assim das lutas, mas, bom, elas não são o foco do filme. Mesmo assim, cenografia, fotografia e figuração do filme foram dignas de Oscar. Outro DVD pra resgatar aqui em casa.

    Mas, sem dúvida, a lista é muito longa. Operação Kung Fu, Os Inimigos do Reino, A Sombra do Tigre, Operação Scorpio, O Mestre Imbatível (o filme em que Jackie Chan usa o estilo bêbado, q teve a seqüência com um nome totalmente diferente no Brasil)... E tem realmente MUITA coisa.

    ResponderExcluir
  4. Bom e longo post... fiquei curioso quanto a esse cenário, obrigado pela dica!

    ResponderExcluir
  5. Só pra fins de errata, só agora percebi q escrevi erroneamente o nome do ilustre diretor de Herói, Clã das Adagas Voadoras, Trem de Zhou Yu e Maldição da Flor Dourada. A escrita correta é Zhang Yimou.

    ResponderExcluir
  6. Shame nada, eu só achei que não era de bom tom citar um filme que você não tinha citado e onde não aparece uma luta legal sequer.

    E depois eu sou a Scorpion fdp, por mais que eu adore as intrigas da corte que rola nesse filme eu não achei que ele caberia com uma primeira demontração no sistema.

    XD

    ResponderExcluir

Leia Também:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...