5 de julho de 2010

Tormenta: As Crônicas do Peregrino

Galera, abaixo segue uma história bem curta (mas que pode se estender bastante, dependendo da repercussão e recepção geral) aqui no blog. Comecei a ler Tormenta meio que desinteressado, mais para encher meu tempo vago do que para qualquer outra coisa. Bom, foi uma evolução natural chegar até Área de Tormenta e a (o que considero hoje um dos melhores romances de literatura medieval/fantástica nacional) O Inimigo do Mundo. Estou muito longe de escrever como o Caldela, mas, mesmo assim, considerei um bom plot para uma história. Segue abaixo o primeiro (e talvez o último) episódio de "As Crônicas do Peregrino".



Crônicas do Peregrino - Parte 1

Khalmyr descansou seu queixo sobre sua mão, ponderando sobre o que ouvira até então. Sua corte não ousava fazer barulho algum. Toda sua corte, que muito mal poderia ser chamada de corte, em silêncio fatídico e disciplinado. Todos eram soldados valorosos da eterna luta contra forças maléficas cujos feitos em vida lhes renderam uma eternidade em glória jubilosa no resplandecente palácio de Orderia. Todos os olhos direcionados ao pequeno homem envolto em mantos escuros diante do poderoso deus da justiça. Khalmyr podia muito bem fulminá-lo ali mesmo. Ele tinha poder o bastante para isso, era inegável. O pedido do homem podia ser entendido como uma blasfêmia, algo inconcebível para qualquer mortal. Mas o homem diante dele não era qualquer mortal. Embora fossem muitos os feitos remetidos a ele, a figura que era praticamente um inseto perante a glória e resplendor do poderoso Khalmyr renunciara ao seu próprio nome. Ele atendia apenas como “Peregrino”, e estava diante do excelso deus para um pedido ousado. Suas palavras foram comedidas e cuidadosas.


— Venho, diante de ti, grandioso Khalmyr, mão de prata que destrói o mal e elimina a peçonha da corrupção, para pedir-te um passo na longa caminhada para a cura do maior dos males. — O estranho Peregrino ousou elevar seus olhos ao olhar implacável do colosso de honra, pedra, prata e glória diante dele. — Peço-te um exército, lorde de todos os lordes. Um exército para marchar contra o coração da Tormenta.

Talvez tenha havido riso, rapidamente engolido no denso ar de tensão que se instalava.

— O que me pede é deveras ousado, Peregrino. —a voz de trovão do deus encheu todo o palácio, Khalmyr ressaltou essa última palavra. Ele parecia querer grifar a posição do mortal diante dele. — Ousaria comandar uma legião direta de meus súditos, enquanto eu ficaria sentado em meu trono esperando que fossem corrompidos?

O homem pareceu retrair-se. Talvez por temor aos deuses. Talvez por medo do deus ali presente.

— Tão certo como vive a tua alma, resplandecente Khalmyr, não lhe intento mal nem tampouco ofendê-lo em sua honrada casa. Peço apenas que dê o primeiro passo. Que escolha dentre os seus os melhores, os mais dignos e mais poderosos em guerra. Que dê ao seu mundo a honra de ver o mais glorioso dos exércitos marchar contra o maior de todos os males. Meu propósito é salvar este mundo e os mundos além dele.

Khalmyr ponderou por um momento. Ninguém deveria saber sobre as origens da Tormenta. Da traição dos três deuses. Khalmyr pessoalmente tratou que os próprios deuses se esquecessem disso. Contudo, aquele homem sabia da verdade. Ele participara da cruzada pela libertação da deusa Valkarya de sua prisão de pedra. Castigo imposto pelo próprio Khalmyr. Se aquele homem estava ali diante dele, isso significava que ele tinha um plano. Algo que só poderia concebido a partir de informações que a própria Valkarya lhe tivesse contado. Dizer que ele não tinha intenção contra os deuses era uma afirmação incerta. Se soubessem qual a parcela dos deuses na aflição que recai sobre os mortais, muitos talvez adorariam aos demônios mais horrendos em busca de uma parcela de misericórdia.

Khalmyr apertou seus olhos fitando através do Peregrino. Ele viu através de sua alma, pelas entranhas de seu coração e varreu sua mente na velocidade do pensamento. O homem dizia a verdade. Um sorriso pareceu germinar no canto da boca do glorioso deus. O Peregrino tinha um plano.

— Diga-me, Peregrino. O que pretende afinal? Isso tudo é apenas um passo de um plano maior, não?

— Vossa suprema santidade enxerga através de minha existência e já sabe que não. — O Peregrino se curvou novamente, desviando seus olhos daquele olhar insuportável.

— Devo lembrá-lo, mortal, que está nos domínios do mais poderoso deus de todo o panteão. O teor de suas palavras mantém sua alma ainda presa ao corpo.

O Peregrino pareceu engolir em seco, rezando para que ao tocar nesses assuntos, não despertasse a ira de Khalmyr. Isso fracassaria sua missão antes mesmo que ela começasse.

— O que realmente pretendo, grandioso Khalmyr, não é apenas uma legião divina contra a Tormenta. Pretendo formar vinte.

Os ali presentes se entreolharam com espanto nos olhos. Um leve gesto dos dedos de Khalmyr silenciou o sublime burburinho.

— Explique-se melhor. — Pediu Khalmyr, o que mais pareceu uma ordem de formação militar. Os olhos do deus se afiaram com aço e interesse.

— O grandioso Khalmyr bem sabe que o poder do mal de todos os males é oriundo da conspiração de três deuses. Verdade seja dita que seus servos cresceram em número, tamanho e poder. Mas, diante de todas essas conjecturas, resta a pergunta se o poder de vinte deuses seria o suficiente para detê-lo. De uma vez por todas.

— E o que espera, mortal? Que eu dê ordem aos meus irmãos para que se atirem ao lado de seus escolhidos ao abismo da morte certa?

— Ouso em dizer que não. — O Peregrino respirou fundo. Aquelas palavras poderiam arruinar tudo o que conquistou até agora. — Peço apenas, maior de todos os deuses, que dê o exemplo. — O Peregrino ousou ainda mais em olhar de volta aos olhos de Khalmyr. Novamente houve silêncio. Todos pareceram recuar em reflexão. Seria isso uma blasfêmia? Estaria este “Peregrino” alucinando a respeito de sua real posição diante do panteão? Seria isso um plano acéfalo ou um estratagema complexo vindo da própria Tormenta? Houve quem pensasse em Szzass. — Peço, Khalmyr, não por minha glória, pois esta guerra não trará nenhuma. Não por querê-lo mal ou aos deuses, pois se o quisesse, vossa suprema santidade já teria me extinto até as cinzas da alma. Peço por amor à criação. Peço pelo perdão dos erros que este teu servo já cometeu. Peço que salve o mundo. Peço que forme apenas a primeira das vinte legiões divinas que marcharão ao coração do mal de todos os males. E que se esta for a vontade do destino deste mundo, sairão vitoriosos.

Khalmyr pareceu se abaixar, se aproximando do inseto diante dele, como se quisesse que ele ouvisse melhor o que tinha a dizer.

— Deixe-me ver se entendi, Peregrino. Você me pede que selecione os melhores de meus melhores. Os mais lendários, poderosos, dignos e experientes; entregue-os ao teu comando para lançá-los, junto às demais dezenove elites celestiais para marcharem contra um poder incalculável para que sejam aniquilados por algo incontáveis vezes pior que a morte numa guerra totalmente inglória e sem sentido?

Ele sentiu o peso de cada palavra. Cada uma delas, um mundo sobre suas cotas. O Peregrino pareceu se arrepender de responder, mas o fez.

— Sim. — Ele desviou seu rosto para o lado e para baixo. Pelos seus olhos, ele parecia contar cada um de seus pecados — Eu peço que faça o que pode, ao lado de seus irmãos e irmãs, pelos seus filhos e por toda a maravilhosa criação.

— Você entende, Peregrino? Entende que se o fizermos arriscamos toda a existência? Nossa e de todos os mundos abaixo?

— Entendo, Khalmyr, que se não o fizermos, mais cedo ou mais tarde, não haverá deuses ou mundos para serem salvos. Se for o nosso inexorável destino sermos consumidos pela Tormenta, então que diferença meu pedido fará?

Khalmyr franziu suas sobrancelhas, pronto a apagar este mortal da existência meramente por ter pensado em repreender um deus. Ao redor do Peregrino, os soldados angelicais de Khalmyr pareciam prontos a demonstrar ao estranho a punição por tal ousadia. No coração do Peregrino, havia dúvida, arrependimento, e uma fraca fagulha de esperança. Suas palavras, porém, ecoaram na mente de Khalmyr. O Peregrino fechou os seus olhos, encomendando sua alma para qualquer que fosse o destino de uma alma como a sua. Uma prece sussurrada, pouco acima de sua respiração. Após os segundo mais longos de sua vida, porém, a voz de Khalmyr retumbou pelo palácio novamente.

— Terá o que me pede, Peregrino. — O homem voltou a respirar de novo. E podia jurar que sentiu seu coração parado até então. — Contudo, não lhe darei poder imerecido. Se é o que desejas, e se o desejo em teu coração é puro o suficiente, então, farás aliança com meus outros dezenove irmãos. Se conseguirdes, então terás minha legião. Agora vá, Peregrino. — O deus ergueu seu poderoso braço em direção ao portão do salão divino. — É uma grande missão a que o espera.

Então foi assim. Foi assim que começou. O começo do fim.

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