No episódio de hoje (que em parte visa substituir a seção "Gempukku", que eu burramente esqueci de montar a enquete em tempo hábil), o exército do Unicórnio mostra a que veio, e finalmente temos o primeiro combate real dos Contos de Rokugan!
...
Ou não.
Contos de Rokugan (Parte 3): A Voz da Paz
Era impossível não ouví-los. Os cavaleiros do Clã Unicórnio não faziam o menor esforço para passarem despercebidos ao cercar Mitsu Ama no Mura. Eles queriam mostrar que estavam ali, ostentavam suas armaduras, o aço afiado em seus punhos e o bufar furioso de suas montarias. Qualquer ser humano comum sentiria medo diante de uma legião Unicórnio. Mas o Leão não é feito de homens (ou por sinal, mulheres) comuns.
Tão logo perceberam do que se tratava, os poucos guardas Akodo e os ashigarus da cidade tomaram suas posições estratégicas. Lanças e katanas em punho. Fúria temperada com honra nos olhos. Lado algum aparentava se mover, o Unicórnio tentava instilar medo no Leão pelo cerco. O Leão, mesmo que atipicamente colocado no papel de defensor, recolhia seus camponeses para o centro da cidade. Qualquer um que tivesse um papel minimamente combativo no pequeno vilarejo foi chamado aos limites da cidade. Se o Unicórnio ameaçava com medo, o Leão revidava com coragem inabalada. Ao menos nos olhos de seus samurais. Os ashigarus, porém, tremiam, mas fariam o que fosse possível para defender suas famílias. Estranhamente, porém, a cavalaria branca não se movia. Mantinham o cerco, com aproximadamente duzentos cavaleiros, mas não faziam qualquer esforço para invadir ou atacar o vilarejo.
Matsu Hanari ajeitava os últimos detalhes de sua armadura quando andava a passos firmes pelas ruas da vila. As pessoas ainda estavam sendo remanejadas, quando encontrou com Ikoma Niro, que gritava ordens e incentivos, enquanto ajustava seu passo ao da guerreira.
"Quem diria, não, Hanari-sama? E eu que esperava um outono monótono." Não havia lamentação na voz do polido magistrado. Outros samurais subordinados retransmitiam as ordens numa cadeia organizada de gritos, enquanto o férreo farfalhar de armaduras caminhava.
"O Unicórnio ousou violar as terras sagradas do Clã Leão sem motivo algum com uma afronta à Mão Direita do Imperador, Niro-san. Pagarão caro por cada passo de seus animais imundos." Respondeu Hanari, fazendo questão de elevar um pouco a sua voz. Se isso pudesse aquecer o coração de um simples companheiro seu e afastar o frígido medo, valia a pena a hipérbole.
"Assim espero, Hanari... Assim espero." Sussurou Niro, para si mesmo.
"Niro-sama," Chamou um yoriki, levemente curvado. "A comandante da força ofensiva do Unicórnio requisita falar com o responsável do vilarejo. Creio que seja o senhor."
"Como ousam..." Iniciou Hanari. Niro a interrompeu com um leve aceno.
"Fez bem, Ichita. Tragam-me um cavalo. Estarei a caminho dela."
"Dois cavalos, Ichita." Hanari impediu a caminhada do yoriki. "Não permitirei que esses bárbaros levem Niro-san a uma emboscada óbvia."
O exército do Unicórnio se mantinha num semi-círculo a algumas centenas de metros do vilarejo. Sua comandante, apenas alguns metros à frente da formação, ladeada por dois guardas de honra, de frente para a entrada principal de Mitsu Ama. Era uma mulher de uma beleza estranha, com olhos estreitos, um rosto bem detalhado, com cabelos que tremulavam como uma única peça de seda negra ao vento. Como habitual, ela carregava o daisho em sua cintura, e às costas um arco longo. Sua aljava ficava ao seu lado, junto à sela. Seu cavalo possuía músculos saltados, que pareciam que explodiriam a qualquer momento dos pêlos marrons. Ela cavalgou até a meia distância assim que viu uma dupla de cavaleiros saindo do vilarejo. Deveriam ser quem ela requisitou.
"Já começava a pensar que o Leão não tinha autoridade delegada neste vilarejo à beira do fim do mundo." Disse a mulher, o olhar alto numa posição de orgulho, e desdenhando das míseras montarias do estranho casal à sua frente. Definitivamente, pensava ela, o Leão não tinha homens de verdade, já que o velho usava uma guerreira muito mais jovem como guarda-costas. Isto é, supondo que eles não sejam ainda mais íntimos... Só o pensamento a enojava ainda mais do Leão.
"Diga logo o que quer, gaijin." Hanari fez questão de destacar a última palavra. "Explique-se porque viola nossas fronteiras com tal afronta!"
A mulher conteve o riso. "E por que eu deveria dar satisfações a uma subalterna? Diga, velho, acaso precisa de que ensinem comedimento a sua senhora?"
O rosnado de Hanari e o crescendo do desembainhar de sua espada foi calado novamente pelo gesto poderoso de Niro. "Não, Utaku-san." Respondeu Niro com classe impecável, após conferir o mon na armadura da amazona. "Sou Ikoma Niro, designado como magistrado de Mitsu Ama no Mura pelo Campeão do Clã Leão, a quem sirvo honradamente desde o tempo de vossos pais tanto nas cortes quanto nos campos de batalha. Agora, creio que me deva explicações, para dizer o mínimo. Utaku..."
"Shai. Utaku Shai, Ikoma Niro-san," respondeu a dama guerreira com uma casual reverência. "Você é o magistrado desta cidade?"
Niro olhou com estranheza para Hanari. Ele acabara de dizer isso, mas mesmo assim, respondeu. "Sim."
"Você ocupava este cargo quando Shinjo Tanae e Shinjo Kien-li morreram?"
"Se refere-se aos dois samurais do Unicórnio que circulavam sem autorização em nossas terras, sim, apesar de não ter sido informado dos seus nomes."
"Eles estavam sós quando morreram?"
Niro pensou por um momento. "Ao que tudo aponta, sim."
O interrogatório irritava ainda mais Matsu Hanari, mas ela não contrariaria a autoridade de Ikoma Niro.
"O assassino de Shinjo Tanae e Shinjo Kien-li já foi executado?"
"Não, mas..."
"O Clã Leão ao menos o possui sob sua custódia?" Shai interrompeu o magistrado.
"Naturalmente que não, já que..."
"Ótimo. Isso é tudo que eu precisava saber." Antes que sequer Hanari entendesse completamente o que estava havendo, Shai sacou seu arco com uma velocidade impossível. Quando os reflexos de combate da Matsu despertaram, já era tarde. Ikoma Niro já estava ao chão, com uma flecha atravessada nas costelas, ele se engasgava com o próprio sangue que lhe escorria pela boca e pelo ferimento num gesto débil e atônito.
Ikoma Niro, que defendeu a honra do Leão em incontáveis conflitos contra a Garça.
Ikoma Niro, que foi juiz no Campeonato de Topázio, no ano em que Matsu Hanari competiu.
Ikoma Niro, que era um dos principais aliados da família de Hanari, a quem ela tinha como um pai.
Ikoma Niro, que era o mais alto exemplo de Honra e Valor a quem Matsu Hanari conhecia e admirava de perto.
Agora estava reduzido a uma imagem derrotada, incapaz do mais trivial gesto de respirar.
Ikoma Niro. Aquele que era, mas que não é mais.
Tudo isso passou pelos olhos da memória de Matsu Hanari no tempo de uma batida de seu coração. O sangue lhe subia aos olhos arregalados de espanto e fúria, o grito que lhe ardia os pulmões não podia mais ser contido e ela jurava para si mesma que aquela mulher pagaria com sua própria vida pelas afrontas. E isso ainda seria pouco. O sangue de todos aqueles bárbaros imundos talvez ainda fosse pouco para apaziguar a sede de sangue que lhe tomava naquele momento.
A no-dachi de Matsu Hanari se dirigiu arco perfeito em direção à garganta de Utaku Shai, mas ela esquivou do golpe sem muito esforço, tirando proveito da posição superior concedia por sua montaria.
"Bárbara imunda! Você não é melhor que a besta que lhe serve de montaria!"
"Hm." Se admirou Utaku Shai. "Não imaginei que uma capacho do Clã Leão entendesse tão bem nossos costumes..."
Matsu Hanari achou por um momento que fosse explodir de raiva. Ela só rezava para que suas lágrimas não lhe impedissem a gloriosa visão daquela mulher dividida ao meio aos seus pés.
Outro brado saiu de Hanari, mas, depois disso, o que se seguiu foi o barulho de muitas águas, como se ela estivesse encoberta por uma cachoeira, ou um rio muito forte, em seus ouvidos, então veio a desordem. Hanari se sentiu como se estivesse no meio de uma correnteza confusa. Não era possível determinar acima e abaixo. Não fazia sentido. Havia ainda o vilarejo inteiro para que chegassem ao rio. No meio da turbulência que a envolvia, porém, ela foi arrastada alguns passos para trás. Não interessava qual truque sujo o bando de Shai apelava agora. Seria preciso mais do que isso para impedi-la de vingar Niro. Foi então que, fora da correnteza súbita, Hanari se deparou com uma Shai igualmente atônita, tão molhada e sem fôlego quanto ela, ao chão, ajoelhada como ela.
"Chega!" Bradou uma retumbante voz vindo do vilarejo. Ao longe, via-se apenas uma forma de um homem, suas mãos juntas, em posição de prece, mas com olhos fixos às duas. "Chega desta balbúrdia. Pela autoridade Imperial a mim concedida, exijo que me ouçam!"
Os dois guardas de honra do Unicórnio se apressaram para junto de sua comandante, lanças prontas para o pior.
"Utaku Shai, contenha seus soldados." O tom arrogante do homem de vestes laranjas e verdes fez Shai pensar na hipótese de ignorá-lo. O selo Imperial a fez pensar melhor. "Sou Isawa Sageru. Magistrado de Jade e representante do Clã Fênix. Em posse de tal autoridade, exijo que esta tropa retorne imediatamente ao Clã Unicórnio. A simples estadia dela aqui é uma total afronta às Leis Imperiais!"
"Não me venha com ordens, shugenja!" A respiração de Shai era pesada, mas o tom desrespeitoso era evidente. "A incompetência deste senil magistrado custou as vidas de dois samurais de meu clã. Estou no meu direito de exercer minha vingança."
Sageru se ajoelhou e impôs suas mãos sobre a ferida de Niro com uma prece sussurrada, dando pouca atenção a Shai. Ele em seguida chamou Matsu Hanari, disse a ela para providenciar socorro e descanso ao velho cortesão. Hanari relutou, mas foi junto com Niro carregado por outros soldados com o olhar de inimizade fixo na Utaku.
"As circunstâncias das mortes dos samurais do Unicórnio estão sendo devidamente investigadas pelos Magistrados de Jade, Utaku Shai. Sua presença aqui em nada colabora para o andamento das investigações. Qualquer posterior insinuação do contrário será tida como contestação da autoridade Imperial. Não sugiro que a cometa."
"Não tenho o direito de voltar ao meu senhor de mãos vazias. E nada nem ninguém vai me impedir de vingar suas mortes-"
"Sua vingança já foi feita, Utaku Shai." Interrompeu Isawa Sageru. Se virando para a amazona. "Sua estadia na atual circunstância viola os tratados que represento. Contudo, no seu lugar, rezaria para que o ferimento de Niro não seja fatal. Se você quer encontrar o assassino de seus irmãos de clã, ele poderá providenciar os documentos de viagem de que necessita para não ser imediatamente deportada de volta ao seu clã."
"Você não entende, não é, Fênix imbecil!" Utaku Shai se levantou, seu punho direito fechado ao ponto de quase sangrar a própria palma. "Tenho duzentos cavaleiros fortemente armados atrás de mim! Vocês têm menos de cinqüenta soldados a pé e um shugenja. Você não está em posição de fazer exigências! O que me impede de colocar este vilarejo ridículo ao chão?"
"Seus cálculos estão incorretos, Utaku Shai-san." Isawa Sageru parou e virou o rosto para ela. Utaku Shai podia jurar ver fogo e trovões em seus olhos por um momento. "São sessenta e sete guerreiros do Leão cuja animosidade para com seu clã é notória, um shugenja e oito mil espíritos atrás dele."
("A voz da paz às vezes deve soar como um Trovão." - Tao de Shinsei)
"A voz da paz às vezes deve soar como um trovão". Um belo e sábio provérbio, uma ótima forma de fechar este ótimo conto. Hei de ler as outras partes!
ResponderExcluirMuito loco! Aguardando a continuação.
ResponderExcluirPor vezes fico me perguntando pq todo mundo fica no "aguardando continuação"? Acho meio frustrante pq ninguém comenta dos contos por si só, nem pergunta o q zorras deu na cabeça da Utaku pra sair flechando quem ela vê na frente... Bom, pelo menos deu pra distrair um pouco em relação ao Vento Vermelho. XD
ResponderExcluirE é claro. Meus inúmeros agradecimentos a todos q se dão ao esforço de virem aqui comentar, e q de um jeito ou de outro, colaboram para que a HnI continue prosperando.