28 de fevereiro de 2011

Corte de Inverno: "Não há mais espaço no mundo para artistas"


A frase do título foi dita por um dos homens mais respeitados no seu ramo no Brasil. Seria um político meio alienado, tipo dos que temos aos montes? Um filósofo sociólogo aprendiz de FHC (e político)? Um agente do Povo Outonal querendo dizimar de vez o Glamour dos Changelings no Brasil?

Não, não. Ledo engano. A saber, me lembro bem de tê-las ouvido em entrevista direta ao técnico da seleção brasileira de vôlei masculino, nosso estimado e respeitadíssimo Bernardinho. Na ocasião, o Brasil havia acabado de perder para a Itália numa final de algum campeonato importante de vôlei. Justificando sua derrota, o técnico disse que o Brasil apresentava um potencial criativo muito superior ao da rival, mas eles tinham mais técnica, preparo e agiam com precisão mecânica. Um estilo de jogo muito mais feio se pararmos para pensar, mas muito mais eficiente.

Tá, o que isso tem haver com RPG ou com qualquer outra coisa que seja tratada nesse blog?

Diante dos mais recentes fatos ocorridos na esfera de produção e consumo de RPG, quadrinhos e muitas outras mídias narrativas, acho a declaração de Bernardinho, no mínimo, muito cabível.


Mesmo as tidas como onipotentes editoras norte-americanas de quadrinhos passaram por ótimos perrengues na última década, vindo a integrarem o conglomerado da Warner durante um tempo, quando só então a Marvel foi vendida para a Disney. A fábrica de sonhos americana, que antes era tida como uma "arte inferior" e que hoje praticamente sustentou a indústria cinematográfica no ano retrasado só alcançou todo esse respaldo, calando todas as críticas demagógicas por um simples motivo: Seus filmes davam dinheiro. Reanimavam marcas até então falidas, vendiam bonequinhos, CDs, jogos e toda aquela parafernalha paralela aos blockbusters hollywoodianos.


No RPG, o raciocínio também não é novidade. Quando a Wizards of the Coast devorou a pequenina galinha dos ovos de ouro que era a TSR a fim de garantir uma hegemonia invicta até hoje nos ramos de RPG (com D&D) e card games (com Magic), foi uma manobra de mestre. Não que isso tenha sido editorialmente fenomenal. Tenho para mim que são poucos realmente os profissionais do RPG bons de fato que a Wizards tem. O que ela tem como principal motivo de ser A giganta dentre as editoras é seu temível exército de advogados, administradores, acionistas e outros profissionais "de apoio". Eles não garantem produtos de qualidade para a editora, mas garantem que sua marca seja sinônimo de força. Garantem que ela não caia no continente movediço que é o mercado editorial americano.

Há algum tempo, me perguntava se D&D é o RPG mais forte do mundo (com dois filmes já feitos, o terceiro em produção, uma série de desenhos animados e incontáveis outros produtos na franquia) por que vendia mais, ou vendia mais por ser o mais "forte" (ler: popularmente difundido). Hoje, acho que a resposta é clara. Força e permanência no mercado atualmente não se dá (pelo menos não "apenas por") por boas idéias, iniciativas arrojadas ou inteligência no ramo artístico com o qual se trabalha. Hoje, temos um "mercado artístico", um "mercado editorial de RPG" e vários outros mercados intelectuais, à proporção insonhada por qualquer Adorno da vida. E as editoras de quadrinhos deixaram de ser meras fábricas de sonhos para garotos e passaram a ser empresas. Isso nos leva à sentença mais rotineira nas discussões de motivos para esta ou aquela abordagem nesses ramos: "Isto é uma empresa. E empresas servem para dar lucro." E pouco mais além disso.

É verdade que tempos de crises sérias exigem reinvenções. A DC Comics estava entre a cruz e a espada nos anos 90. A Marvel, sua concorrente ferrenha, se sagrava como "a casa das idéias", e os principais símbolos da primeira soavam jocosos, anacrônicos e bobos, não conseguindo mais conquistar um público novo e perdendo antigos fãs na pequena era das trevas que foi a chamada Era de Cromo (recebe este nome bem informal devido ao fato do apelo a capas de revistas metálicas, papel interno lustroso impresso com porrilhões de cores que só encareciam o produto final, que era bem desprovido de conteúdos argumentativos mais sólidos). Imperava nas histórias a banal certeza do retorno à tranqüilidade. Heróis morriam para serem ressuscitados banalmente, e não importava quais os esforços dos vilões, os heróis sempre tinham um recurso besta que frustrava mesmo os planos mais maquiavélicos. Isso era chato. Pra caramba! Mas foi então que surgiu um tal de Neil Gaiman e soltou um flashbang na escuridão. O cara simplesmente comprou a preço de banana os direitos do herói que ninguém lembrava que existia (Sandman foi um dos membros do Grêmio da Justiça da América), e ele recompõe uma história de uma maneira magistral. Ao invés do detetive com máscara de gás e pistola sonífera, o Senhor dos Sonhos ganhava lugar. O resultado foi uma obra eternizada, um nome ovacionado e milhões de fãs querendo matá-lo por ele se recusar a continuar a história. Mas que se tornaram consumidores vorazes re-encantados com o universo mágico e ao mesmo tempo maduramente fascinante que Gaiman criara. Ah, sim. Também foi criado o selo "Vertigo", para títulos mais adultos dentro da DC, que hoje ostenta o nome de vários escritores mais classicamente consagrados, como o temível Stephen King.

Não se pode medir precisamente a influência da obra de Gaiman para o gênero mais "capa e colã" da editora, mas creio que a saída era bem óbvia na ocasião. Resultado, tivemos roteiristas mais atentos na DC. Seria injusto citar apenas um ou outro, mas sou muito fã do trabalho que Grant Morrison (Sete Soldados da Vitória, mas gosto de tudo que ele escreve!), por exemplo, fez nesse gênero. Histórias que misturavam muito bem justiça, mistério e suspense numa trama suficientemente complexa para manter o interesse e não fazer o leitor se sentir ofendido por um tratamento prepotentemente patriarcal por parte do escritor.

"Não me interessa se isso cura o câncer.
Isso vai me deixar rico ou não?!"
Tudo isso foi muito bonito, muito heróico. Mas, verdade seja dita, muitos outros caras criaram coisas mais geniais em tempos talvez mais difíceis, mas não tiveram seus nomes tão consagrados assim. E até mesmo o pai dos artistas contemporâneos (Marcel Duchamp, que só foi quem foi por ter agradado e convencido a crítica então vigente) só foi quem foi pelo mesmo motivo: Mais do que se provar competente e promissor, ele (e esses roteiristas supracitados) agradaram aos donos do dinheiro. Não só seus patrões, mas outros "burgueses" que aceitaram investir neles porque achavam com relativa certeza de que existiria um retorno. Inovar sem retorno também não é novidade. Waterworld que o diga.

"Unobtanium. Isso banca suas pesquisas, sua ciência e seu RPG.
Portanto, vá desabrigar uns Na'vis por aí para continuar jogando."
Resumo da ópera. Em outros campos da mídia isso está mais do que provado. Dinheiro é o que faz o mundo girar, e a arte (ou os quadrinhos, ou o RPG) não está imune a isso. Ou seja, esperneie o quanto quiser, mas D&D 4th foi necessário para reaquecer os fornos da Wizards, e tomar para si tudo aquilo que as outras editora cultivaram para ela (ler: uma legião de consumidores viciados fãs do sistema), e que nunca deveria ter deixado de ser dela. Bom, pelo menos do ponto de vista da "vilanesca" Wizards, que precisa sentar a foice em tudo quanto é pescoço para conseguir se manter viva dentro da implacável Hasbro.

Em parte, isso dita uma suposta postura de nós, como fãs, de sustentarem nossos "ídolos" comprando produtos, apoiando editoras e garantindo que a geração futura ao menos terá a oportunidade de conhecê-los. Mas também demonstra que, infelizmente, boas idéias não adiantam muito sem alguém com uma quantidade temível de capital por trás. Em praticamente qualquer ramo é assim.

Deve ter um capítulo "Como piratear livros de
RPG" nesse livro...
Fico pensando se de repente revolucionar o mercado chutando de verdade esse vespeiro seria uma boa idéia. Como por exemplo, profissionalizar tradutores "piratas". Isso mesmo, o insólito ideal de cobrar pelas traduções, pondo um fim à hegemonia de editoras que tem se mostrado incapazes de acompanhar o ritmo. Aliás, culpa que nem é tanto das editoras, e sim do formato dessa idéia de editora > loja > consumidor que é lento, burocrático e caro. Fato, isso abriria uma questão legal imensa, já que é uma violação sonora dos direitos autorais estrangeiros. Ao meu ver, isso requeriria uma estrutura gigantesca, com talvez centenas de fachadas a fim de proteger a identidade dos tradutores, ao modo dos programadores de emuladores. E já que ninguém toparia esse trabalho correndo risco de ser preso, multado e sem ganhar nada, outra estrutura para agilmente conseguir orientar downloads e pagamentos, talvez ao nível da Drivethru.

O que também seria muito bonito e garanto que talvez realizasse o sonho de muitos aqui. Mas, cairia na irônica contradição de que a base para a manutenção do sistema seria a fidelidade dos próprios consumidores piratas para não "piratearem" ainda mais o produto distribuindo-o gratuitamente por aí. Aumentar o preço antecipando esse comportamento ao meu ver pioraria o problema que ele visava solucionar (editoras cobram "caro" pelo jeito com que trabalham com livros de RPG).

Ou seja, é complicado. Porém, se fosse um tema simples, não seria necessária discussão. E vocês, o que acham disso tudo?

Um comentário :

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